O quilombo de Manoel Padeiro teria sido formado no segundo semestre de 1834. Como vimos, em 10 de outubro a câmara registrava que "quilombolas" estariam cometendo "atentados na serra". Segundo o processo, Manoel Padeiro vivera fugido anteriormente na região em companhia da preta Marcelina, que morrera de morte natural e fora enterrada num dos diversos ranchos em que se refugiavam os quilombolas.
Era crível que Manoel Padeiro, recapturado, tivesse escapado novamente, sozinho ou acompanhado. Dos doze fujões que formaram o núcleo central do quilombo, quatro eram cativos do senhor de Manoel Padeiro - o rico comendador Boaventura Rodrigues Barcellos. A documentação revela também que eram íntimos e constantes os contatos dos quilombolas com a escravaria daquele senhor. Foi precisamente a um cativo do comendador que o malogrado Mariano recorreu, quando se encontrou em dificuldades.
Não sabemos exatamente quando e como os quilombolas se reuniram. O certo é que, nos primeiros dias de abril de 1835, sob a indiscutível autoridade do Padeiro, o bando passou a assaltar chácaras da serra dos Tapes. Os ataques só teriam terminado, meses mais tarde, em fins de 1835, como debilitamento dos quilombolas devido a mortes e capturas. A documentação registra o primeiro ataque, à casa de Jerônimo Lopes Garcia, por doze quilombolas, provavelmente em inícios de abril de 1835. Do grupo participavam Manoel Padeiro, general do quilombo; João, juiz de paz; Alexandre Moçambique, capitão; pai Mateus; Mariano Crioulo; Antônio Mulato; Antônio Cabinda ou Cabunda; pai Francisco, congo; Francisco Moçambique; Benedito Moçambique; João, cozinheiro e africano; e a mulata Rosa. O cativo Manoel, africano, também do comendador Barcellos, foi preso em uma estrada e teve sua morte pedida por Mariano e negada por Manoel Padeiro. A seguir, incorporou-se aos quilombolas. Não foi possível elucidar o sentido dos títulos juiz de paz e capitão.
Na primeira chácara assaltada, encontrava-se Lindaura, a esposa do proprietário, Jerônimo Lopes Garcia, o que sugere que a serra não se achava ainda deflagrada pelos ataques quilombolas. Na residência, os quilombolas obtiveram farinha, roupas e três armas de fogo. Na ocasião, Alexandre Moçambique propôs o sequestro da senhora Lindaura. Ao que se opôs Manoel Padeiro, certamente consciente de que a ação determinaria uma perseguição implacável ao seu grupo.
Entretanto, o desejo de Alexandre não foi totalmente negado. Os quilombolas terminam carregando consigo a parda Maria, dos Garcias, de 25 anos, que permaneceu com os quilombolas, segundo parece contra a sua vontade, por dois meses. Maria foi a primeira de quatro mulheres - três cativas (Maria, Florência e Dorotéia) e uma livre (Senhorinha Alves) - seqüestradas pelos fujões. O que corrobora a tese de que os quilombolas iniciaram, com esse ataque, a fase mais agressiva de suas andanças na serra.
O processo registra a quase obsessão dos quilombolas por "crioulas" e "pretas". Após serem desbaratados por uma partida policial, a primeira iniciativa do grupo - não concretizada - foi assaltar uma fazenda para conseguir aliados e "pretas". O fato é compreensível. O desequilíbrio sexual na escravidão é registrado pela historiografia. Em média, da África chegavam dois africanos para cada africana. Em 1850-88, nas charqueadas pelotenses a taxa de masculinidade encontrava-se em torno de 87%. Em geral, os quilombos eram formados sobretudo por homens.
Quando do primeiro ataque registrado, o grupo quilombola da serra dos Tapes compunha-se de onze homens e apenas uma mulher. A mulata Rosa, do comendador Barcellos, seria uma decidida quilombola. Vestida de homem e carregando duas facas na cintura, participava ativamente dos ataques calhambolas. Segundo parece, ela não pssuía um companheiro fixo. Rosa morreu, resistindo ao primeiro ataque reescravizador, em 16 de abril de 1835, junto com João, "Juiz de Paz".
Após o assalto à chácara de Jerônimo Lopes Garcia, os quilombolas prosseguiram numa quase incessante peregrinação pela serra. Sem jamais assentarem raízes em um local preciso, alternavam paradas - para descanso, geralmente em acampamentos já utilizados - com o assalto às residências da região. Nove moradias e duas senzalas foram roubadas e incendiadas e um número indeterminado de casas, rapinadas. As últimas residências assaltadas, antes do ataque policial de 16 de junho, pouco renderam aos quilombolas. Segundo parece, aterrorizados, os moradores haviam abandonado a região, levando o que podiam. Nos assaltos, além das preciosas crioulas e mulatas, os quilombolas obtiveram alimentos (farinha de mandioca, milho, feijão, etc.), vestimentas, fumo, pólvora, armas de fogo e objetos de valor (estribos e colheres chapeadas a prata).
A documentação em questão evidencia um fenômeno comum em outras regiões do Brasil: a promiscuidade entre os quilombolas e a população escravizada. Os seguidores de Manoel Padeiro obtinham informações dos escravos das casas assaltadas. Cativos participavam de ataques, sem em seguida acompanharem os quilombolas. Negros eram trazidos para o acampamento quilombola, onde passavam a noite dançando e comendo, para partir ao amanhecer. Porém nem sempre o apoio dos quilombolas era voluntário ou desinteressado. A documentação sugere uma realidade mais complexa. Entre quilombolas e trabalhadores escravizados existia uma identidade, social e cultural, de fato, que levava a que uns e outros dialogassem com singular facilidade e freqüência, mesmo quando um cativo se opunha à fuga e ao aquilomabamento como solução de seus problemas. Esses profundos laços punham também em contato, algumas vezes em forma contraditória, escravos e ex-escravos.
Possivelmente em fins de abril, Mariano pediu licença a Manoel Padeiro para ir vender milho e comprar fumo e pólvora nas proximidades da vila de Pelotas. O general concedeu e permissão e enviou pai Francisco com o crioulo. A documentação sugere a fina razão da escolha. Depois de roubarem e ensacarem milho, os dois quilomboloas dirigiram-se, numa viagem de nove dias (ida e volta), a uma venda em Boa Vista, nas proximidades de Pelotas, de propriedade do africano liberto Simão Vergara, conhecido pelos quilombolas como pai Simão. O africano alugava parte da casa em que morava, e outras casas de sua propriedade, para negros ganhadores.
A venda do pai Simão não seria das mais providas. Sua esposa, a preta Teresa, acompanhou pai Francisco para que comprasse sem problemas erva-doce, pimenta-do-reino, açúcar e cominhos, em outra bodega. Na venda de pai Simão, os quilombolas compravam fumo e a preciosa pólvora. Mariano declarou que as negociações entre pai Simão e pai Francisco se deram na "língua do Congo", que ele não conhecia. O fato de os dois africanos serem chamados de pai e conhecerem o quicongo, sugere que seriam congos de nação e, talvez, da mesma idade.
Não seria muito sólida a solidariedade nacional. Pai simão trapaceou de tal modo o conterrâneo, pouco afeito aos negócios, ao trocar a valiosa moeda que o Padeiro lhe entregara para as compras, que o general castigou com laçaços os viajantes, quando voltaram ao quilombo. Mariano, talvez por pudor, relatou apenas que pai Francisco teria sido "xingado" pelo Padeiro. Chama a atenção o fato de que o castigo físico, como forma de punição de faltas cometidas, um dos pilares do escravismo, penetrasse tão fundo na consciência dos trabalhadores escravizados que fosse por eles adotado mesmo na liberdade do quilombo.
Depreende-se igualmente da documentação a dominância das determinações sociais sobre as raciais e étnicas na ação dos quilombolas. Era o fato de serem cativos fugidos e perseguidos que unificava o grupo formado de trabalhadores escravizados no Brasil ou na África. A ação dos quilombolas não parece ter sido regida por uma consciência racial que se sobrepusesse às contradições e às necessidades vividas pelo grupo. As crioulas e as pretas Maria, Florência e Dorotéia foram notificadas pelos quilombolas que ficavam livres, ao serem obrigadas, à força, a acompanhares os atacantes. Durante o tempo que permaneceram com o grupo, foram estreitamente vigiadas pelos quilombolas.
A serra dos Tapes era uma zona de médias e pequenas propriedades dedicadas à produção de gêneros de subsistência. Grandes, médios e pequenos senhores tinham chácaras na serra. As nove casas incendiadas possuíam coberturas de palha, o que sugere, numa região onde eram abundantes as olarias, parcos recursos ou investimentos. Proprieadades assaltadas, queimadas ou saqueadas pertenciam a pardos, livres ou libertos. Alguns deles eram senhores de escravos.
Os quilombolas pareciam não fazer diferença entre senhores brancos e negros. Eles arrombaram a residência e assassinaram o pardo liberto José Alves, segundo parece, pequeno proprietário. Após saquearem e incendiarem a casa, carregaram à força a filha de Alves, a mulata Senhorinha. Israel, irmão de Senhorinha, integrou o grupo armado que atacou os quilombolas, libertou as mulheres e matou João, "Juiz de Paz", e Rosa.
A documentação registra também o ódio dos quilombolas aos capatazes, como eram chamados os feitores gaúchos. Os capatazes Domingos José Enes, português de 54 anos, e Eufrázio Antônio da Silva, foram duramente feridos e castigados pelos quilombolas. Durante o ataque da chácara de Tomás Flores, ao saberem que o capataz se encontrava na casa, os quilombolas arrombaram uma janela a machadadas e retiraram e balearam Domingos Enes, deixando-o por morto. Na ocasião, a mulata Maria, seqüestrada pelos quilombolas, teria gritado que matassem o português porque "era mau". A consciência dos trabalhadores escravizados - fugidos ou seqüestrados - se fundia diante da possibilidade de ajustar contas com um capataz talvez sobremaneira impiedoso.
Após porem a serra dos Tapes em chamas e despertarem a ira e o medo dos senhores pelotenses, em 16 de junho de 1835, como vimos, os quilombolas foram atacados por uma patrulha que caiu sobre o acampamento e apoderou-se das mulheres e do tesouro de guerra dos quilombolas. Dois fujões morreram no combate e os outros conseguiram escapar. Porém, mesmo debilitados, a seguir os quilombolas reagruparam-se e reiniciaram os ataques.
Duas semanas mais tarde, no início de julho, os seguidores de Manoel Padeiro, em número de seis a oito, atacaram à noite uma olaria, próxima de Pelotas, com o intento de libertarem "negros" e "negras". No assalto, o mulato Antônio feriu gravemente o capataz do estabelecimento. Segundo parece, os fujões não conseguiram seus intentos. Na mesma noite, atacaram uma venda, no caminho da serra, onde obtiveram pão, farinha e fumo. Em 9 de julho, durante a marcha de volta à serra dos Tapes, encontraram Antônio Grande, que foi chumbeado, degolado e decapitado, segundo Mariano, por ter feito a "partida" a "João, Juiz de Paz".
Texto extraído das páginas 307 a 310 do livro Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil de João José Reis e Flávio dos Santos Gomes.
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